SÉRIE NENHUM DIREITO A MENOS | A luta secular pela reforma agrária e
as poucas conquistas do povo camponês estão mais ameaçadas do que nunca
frente ao golpe em curso. Se a luta pela terra significasse apenas a
disputa por um pedaço de chão para viver, plantar e colher seria até
contraditório que um País tão grande como o Brasil convivesse até os
dias atuais com tantos conflitos agrários. No entanto, para a elite
dominante e para as oligarquias latifundiárias, que passaram a existir
aqui desde a chegada dos portugueses, terra é sinônimo de dinheiro e
poder. São mais de 500 anos de exploração. São exatos 516 anos de luta.
No início do século 20, o Cariri cearense foi palco do massacre do
Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, mais conhecido como Caldeirão do
Beato Zé Lourenço. O clima de prosperidade e a transformação de solos
improdutivos em campos férteis em meio a seca, através do trabalho
coletivo, com recursos próprios, promovendo cidadania, empoderamento e
participação social, incomodaram os grandes fazendeiros da época. Mais
de mil pessoas foram mortas pelo próprio governo de Getúlio Vargas,
chamado por alguns como “pai dos pobres”.
A história de Caldeirão, assim como a de Canudos, Palmares, Pau
de Colher e tantas outras inspiram camponeses e camponeses a permanecer
lutando pelo direito à terra. Esse é o caso de Maria Ana da Silva, mais
conhecida como dona Ana, de 63 anos. Ela participou da ocupação do
Caldeirão, na década de 1990 e, atualmente, vive no Assentamento 10 de
abril, localizado a 37 km do Crato (CE). “Já rodei muito nessas terras.
Morei em Fortaleza, Nova Olinda, em tanto canto, até chegar aqui”,
conta.
As terras do Assentamento, antes sem produção, agora têm vida. As 47
famílias assentadas no local construíram uma igreja, associação de
moradores e possuem uma área de produção coletiva. Dona Ana se dedica ao
roçado, às hortaliças e a criação animal. Ela possui dois hectares
destinados à produção agroecológica e o excedente é comercializado em
feiras agroecológicas no Crato e em Fortaleza. Um sistema de Produção
Agroecológica Sustentável (PAIS), uma cisterna de 16 mil litros e dois
cacimbões contribuem com a produtividade da terra. Todos os filhos e
filhas, sete no total, foram criados com os recursos provenientes do
trabalho dela e do marido na propriedade.
Apesar da conquista de dona Ana e de tantas outras famílias, essa é
uma questão que está longe de um final feliz para os camponeses e
camponesas. Para Roberto Malvezzi, da CPT, “a questão da terra é nosso
pecado original, vem de nossas origens, permeia nossa história, passou
por Canudos, Palmares, etc, e chegou aos dias de hoje e se projeta para o
futuro. É um problema permanente”.
Ano a ano presenciamos um
agravamento dos conflitos e um retrocesso nas políticas de acesso à
terra. Dados do relatório Conflitos do Campo Brasil 2015 apontam o
crescimento das grandes propriedades de particulares entre 2010/2014 foi
de 5,8 milhões de hectares, quando alcançou a área de 244,7 milhões,
segundo as Estatísticas Cadastrais de 2014. Dessa forma, os latifúndios
privados aumentaram 66,7% nesse período, o equivalente a 97,9 milhões de
hectares para as grandes propriedades. “No Brasil não se alterou muito a
questão agrária nos últimos anos. Ao contrário, aprofundou a
concentração de terra no Brasil. Isso se deu em função da ascensão do
agronegócio, favorecido pela exportação, em especial da soja, da cana,
eucalipto e gado, que fez com que muitos médios e grandes proprietários
adquirissem mais terras. Infelizmente, mesmo com todos esses anos de
governo Lula e Dilma, que a gente tinha uma expectativa que pudesse
alterar esse cenário, não houve uma decisão política de fazer a Reforma
Agrária”, reflete Jaime Amorim, da coordenação nacional do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Em 2004, a Carta da Terra,
documento construído por cerca de 500 agricultores e agricultoras do
Semiárido brasileiro e representantes de organizações da ASA, durante o V Encontro Nacional da ASA
(EnconASA), já apontava que as expectativas populares com relação ao
acesso a terra não estavam se confirmando e destacava o agronegócio como
grande desencadeador da exclusão social, da insegurança alimentar e da
degradação ambiental.
Naquela época, os perímetros irrigados, a
transposição do rio São Francisco e o crédito fundiário já despontavam
como as grandes ameaças para a convivência com o Semiárido e entraves
para a Reforma Agrária na região. Passados 12 anos, pouco mudou para o
Semiárido e para o Brasil. “Nesse período ficamos muito mais na reflexão
e no debate com relação à Reforma Agrária, porque o Governo brasileiro e
o Incra pouco fizeram. Mas, não é só a terra. Precisamos também incidir
politicamente no acesso ao crédito, na infraestrutura mínima para
produção e no acesso às politicas públicas que deem condição do povo
sobreviver na terra”, reflete a coordenadora executiva da ASA pelo
estado de Minas Gerais, Marilene Alves (Leninha).
Roberto
Malvezzi também concorda com os poucos avanços, mas reconhece alguns
passos importantes, sobretudo nas políticas de abastecimento, embora
essas só beneficiem quem já tem terra. “Onde as feiras orgânicas
organizadas pelos assentados existem, a procura por seus produtos é
imensa. Programas governamentais de aquisição de alimentos impulsionaram
esse tipo de ação. Entretanto, é pouco diante do consumo de produtos
alimentícios industrializados”.
Outro elemento reconhecido como
avanço por Leninha é a construção de bases legais para a
auto-organização, especialmente dos povos e comunidades tradicionais.
“Avançamos na criação de áreas de assentamento extrativistas e reservas
de desenvolvimento sustentável, por exemplo, que são modalidades de
acesso à terra e ao território diferentes da Reforma Agrária
tradicional. Foi criada a comissão nacional de povos e comunidades
tradicionais, que deu visibilidade às principais lutas e reivindicações
dos territórios”, diz.
Tornar esse projeto político realidade
exige também o diálogo entre campo e cidade. Exige respeito entre os
povos e suas culturas. Exige um outro olhar sobre a relação estabelecida
com o meio ambiente, como salienta Jaime Amorim. “A questão agrária
depende basicamente de uma decisão política. Não se pode olhar a questão
da terra e da Reforma Agrária apenas como uma questão social ou como
uma questão de resolução de conflitos, mas como um projeto de
desenvolvimento para o interior do País, para o meio rural. É preciso
sair do modelo histórico da monocultura agroexportadora. O país deve
pensar em produção de alimentos para primeiro melhorar a condição de
vida do povo e depois pensar na necessidade de exportação beneficiando o
mercado brasileiro e internacional”.
O golpe da direita
conservadora e das elites que agora estão no poder colocam em xeque os
poucos avanços das questões agrárias e, o mais grave, exclui qualquer
possibilidade de diálogo. Para Jaime, “os camponeses são os que mais vão
perder com esse golpe. Falamos que avançamos pouco nos últimos anos com
relação a Reforma Agrária, mas do ponto de vista de todo o processo de
negociação a situação melhorou”.
Questionado sobre as perdas
para o meio rural, ele afirma que “será um retrocesso de muitos anos” e
destaca o fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), as
mudanças na aposentadoria rural e o fim do seguro safra e da assistência
técnica. Ele também demonstra preocupação com relação à política de
convivência com o Semiárido, devido à fragilização e até ao fim de
algumas políticas como o acesso ao crédito, Luz para Todos, Água para
Todos, em especial as cisternas de placas, Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Já
Roberto Malvezzi, da CPT, acredita que nem é possível prever o que vai
acontecer. “Com o governo anterior, havia possibilidade de alguma
conversa, de diálogo, embora na questão da reforma agrária tenha sido
absolutamente frustrante. Mas, havia um incentivo à agricultura familiar
já estabelecida. O atual governo só tem olhos para o capital,
particularmente o especulativo. Então, só um milagre para um governo
como esse voltar seus olhos para agricultura familiar, particularmente
do Semiárido. Esperamos pelo pior”.
Diante desse cenário, mais do que nunca a luta pelo direito à terra e
ao território não pode ser só do povo camponês, dos indígenas,
quilombolas, vazanteiros, geraizeiros e tantos outros povos e
comunidades tradicionais que existem Brasil afora. Assim como tantas
outras, essa é uma luta da classe trabalhadora, que tem ocupado campo e
cidade com o objetivo de retomar a democracia e pela garantia de
direitos. “A questão da democracia e da soberania nacional extrapola a
luta pela terra. Os camponeses organizados nos sindicatos, movimentos
sociais, passaram a construir um momento histórico importante nesse
País. Junto com os trabalhadores operários e os servidores públicos da
cidade temos uma tarefa importante: sair dessa crise política e do
capital com outro nível de organização e entendimento. Precisamos
construir um projeto político e econômico para o Brasil que seja para o
povo e pensado por ele”, conclama Jaime.
Os números dos conflitos agráriosA ausência
da Reforma Agrária e a fragilidade das políticas públicas para o meio
rural, especialmente daquelas que asseguram os direitos da classe
trabalhadora e dos povos e populações tradicionais, favorecem a
multiplicação dos conflitos. Os dados levantados pela CPT mostram que,
em 2015, o número total de ocorrências de conflitos no campo no Brasil
foi 1.217 e envolveu mais de 816 mil pessoas. Entre os conflitos,
dominaram aqueles por terra com 771 ocorrências; 200 ocupações e
retomadas e 27 novos acampamentos. Os conflitos trabalhistas chegaram a
84, sendo que 80 foram casos de trabalho escravo.
Ocorreram
também 135 conflitos por água em 2015. Outros números alarmantes são
aqueles relacionados à violência. No ano passado, 50 pessoas foram
assassinadas nas zonas rurais. Esse é o maior número de vítimas desde
2004 e 39% a mais do que em 2014, quando foram registrados 36
assassinatos. Também há conflitos provocados pelo uso de agrotóxicos.
Foram 23 casos de contaminação em 2015, com 4.267 famílias afetadas,
sendo o maior número já registrado em um único ano.
Fonte: http://asabrasil.org.br/noticias?artigo_id=9617
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